Além de revelar ao mundo os vestígios mais antigos da presença humana nas Américas, a arqueóloga Niède Guidon deixou um legado que vai muito além da ciência. Em sua trajetória como diretora do Parque Nacional da Serra da Capivara, no semiárido piauiense, ela transformou vidas, sobretudo de mulheres, promovendo uma verdadeira revolução silenciosa no interior do Brasil.

Niède, falecida hoje, foi pioneira ao adotar práticas que hoje são vistas como políticas públicas essenciais, mas que, à época, nas décadas de 1980 e 1990, nasciam de sua própria sensibilidade social. Ao formar as equipes que atuariam no parque — desde serviços gerais, manutenção, guias e oficinas de cerâmica — a arqueóloga fez questão de dar prioridade à contratação de mulheres. Muitas delas eram chefes de família, viúvas de maridos vivos, que haviam abandonado suas terras em busca de trabalho em grandes centros urbanos como São Paulo e Brasília, deixando para trás lares, esposas e filhos.

Essas mulheres, frequentemente invisibilizadas e sobrecarregadas, encontraram no projeto de Niède não apenas uma fonte de renda, mas também reconhecimento, dignidade e autonomia. A franco-brasileira que escolheu o sertão piauiense como missão de vida compreendia que o desenvolvimento local não se faz apenas com preservação ambiental e pesquisa acadêmica, mas com justiça social e inclusão.

Mais do que contratar, Niède capacitou. Incentivou a formação profissional, promoveu oficinas, buscou qualificação para as equipes e apoiou o desenvolvimento de cooperativas e iniciativas autossustentáveis — como a tradicional cerâmica em Coronel José Dias e as ações da Fundação Museu do Homem Americano. Seu olhar era o de quem sabia que o verdadeiro patrimônio a ser preservado incluía também as pessoas.

Num país em que o empoderamento feminino ainda enfrenta tantos obstáculos, a arqueóloga se mostrou muito à frente de seu tempo. Ao valorizar mulheres esquecidas pelos sistemas tradicionais de emprego, Niède não só as integrou ao seu projeto como as tornou protagonistas de uma nova história — a história viva de um Brasil profundo e resiliente.

Hoje, ao reverenciarmos a trajetória dessa guardiã do tempo, reconhecemos também a força das mulheres que ela ajudou a erguer. Mulheres do sertão, de mãos firmes e vozes antes silenciadas, que agora ecoam na memória de uma nação inteira, graças ao compromisso inabalável de Niède Guidon com a ciência, a cultura e a transformação social.

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